quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III

Amor de Jesus na instituição do Santíssimo Sacramento, antes de ir morrer

Jesus no Santíssimo Sacramento

Dominus Iesus, in qua nocte tradebatur, accepit panem … et dixit: Hoc est corpus meum“O Senhor Jesus, na noite em que foi entregue, tomou o pão… e disse: Isto é o meu corpo” (I Cor 11, 23)

Sumário. Porque os testemunhos de amor, dados pelos amigos no momento de morrer, se gravam mais fundo na memória e se conservam mais preciosamente, o Senhor quis instituir a santíssima Eucaristia na véspera de sua morte. Ó prodígio de amor! Os homens preparam para Jesus açoites, espinhos e uma cruz, e ele escolhe exatamente esse tempo para nos dar a prova mais preciosa de seu amor. Este amor de Jesus convida-nos a que lhe correspondamos pelo nosso afeto e façamos alguma coisa por seu amor.

I. O Santíssimo Sacramento é um dom feito unicamente por amor. Segundo os decretos divinos, foi necessário para nossa salvação que o Redentor morresse e que, pelo sacrifício de sua vida, satisfizesse à divina justiça pelos nossos pecados. Mas que necessidade havia que Jesus Cristo se nos desse em sustento, depois de sua morte? Assim o quis o seu amor. Se Ele instituiu a Eucaristia, diz São Lourenço Justiniani, foi unicamente para nos fazer compreender o imenso amor que nos tem.

É o que escreve também São João: Sciens Iesus quia venit hora eius (1) — Sabendo Jesus que era chegado o tempo de deixar a terra, quis deixar-nos a maior prova de seu amor, isto é, o dom do Santíssimo Sacramento. Tal é o precisamente o sentido destas palavras: In finem dilexit eos – “Amou-os até o fim”, isto é, segundo a explicação de Teofilato e São João Crisóstomo, extremo amore, summe dilexit eos — “amou-os com amor extremo”.

— E observemos o que nota o Apóstolo: o tempo em que Jesus nos quis fazer este donativo, foi o de sua morte: na noite em que foi entregue. Enquanto os homens preparavam açoites, espinhos e uma cruz para o supliciarem, é que o bom Salvador nos quis dar este último penhor de sua ternura.

Mas porque instituiu este sacramento no momento de sua morte, e não antes? Diz São Bernardino que Jesus assim fez, porque os testemunhos de afeto dados pelos amigos no momento da morte, se imprimem mais profundamente na memória e mais preciosamente se conservam. Jesus Cristo, continua o mesmo Santo, já se nos tinha dado por muitos modos: por amigo, por mestre, por pai, por guia, por modelo, por vítima. Restava um último grau de amor, que era dar-se por alimento, a fim de se unir todo a nós, assim como o sustento se une ao que o toma, e é o que fez dando-se-nos no Santíssimo Sacramento.

II. Dizia o Padre Colombière:

“Se alguma coisa pudesse abalar a minha fé no mistério da Eucaristia, não duvidaria do poder que Deus nele manifesta, mas sim do amor que Deus nos mostra no Santíssimo Sacramento. A pergunta: como é que o pão se torna o corpo de Jesus? Como é que Jesus está presente em diversos lugares? Respondo que Deus tudo pode. Mas se me perguntarem como é que Deus pode amar o homem a ponto de se lhe dar em alimento? Não sei responder senão que não o compreendo e que o amor de Jesus é incompreensível.”

Ah, bem se vê, ó meu Senhor, que o amor não reflete, e faz o amante esquecer-se da própria dignidade, e, como diz São João Crisóstomo, quando o amor se quer patentear ao amado, não vai aonde convém, mas aonde o leva o seu ardor: Amor ratione caret.

O amor imenso de Jesus convida-nos a que lhe correspondamos com outro tanto amor. Ad nihil amat Deus, nisi ut ametur — Deus, diz São Bernardo, não ama senão para ser amado. Se, pois, o amor de Jesus para conosco o levou a sacrificar-se todo para nosso bem, justo é que nós também nos sacrifiquemos todos para sua glória e o amemos tanto quanto deseja.

Ó amor infinito de Jesus, digno de infinito amor! Quando, ó meu Jesus, Vos amarei assim como Vós me amastes? Vós não tendes mais o que fazer para serdes amado por mim; e eu tive ânimo para Vos abandonar, a Vós, ó Bem infinito, a fim de correr atrás de bens vis e miseráveis! Ó meu Deus, suplico-Vos que me ilumineis, descobri-me cada vez mais as grandezas de vossa bondade, a fim de que me inflame todo no vosso amor e me esforce por Vos agradar. Amo-Vos, † Jesus, meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas; e muitas vezes me quero unir a Vós no Santíssimo Sacramento para me desprender de tudo e amar somente a Vós, minha vida, meu amor, meu tudo. Socorrei-me, Redentor meu, pelos merecimentos de vossa paixão.

— Também vós, ó Mãe de Jesus e minha Mãe, Maria, rogai a Jesus que me abrase todo no seu amor.

Referências:

(1) Jo 13, 1


(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 235-238)

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II

Obrigação que temos de socorrer as almas do purgatório

Rezemos pelas almas do Purgatório, especialmente em nossas orações pelo Santo Rosário
 Rezemos pelas almas do Purgatório, especialmente em nossas orações pelo Santo Rosário

Mortuo non prohibeas gratiam – “Não impeças que a liberalidade se estenda aos mortos” (Eclo 7, 37)

Sumário. A caridade cristã não só nos aconselha, mas até nos obriga a socorrermos as almas do purgatório; porquanto são nossos próximos e se acham em grandíssima necessidade. Tanto mais que entre elas podem penar também as almas de nossos pais, parentes e amigos; e, não podendo valer-se por si próprias, recomendam-se a nós por socorro. Que crueldade, pois, não nos apressarmos a socorrê-las, ainda que à custa de algum sacrifício!… Receemos ser tratados depois como nós agora tratamos os outros.

I. A caridade cristã não só nos dá o conselho, mas nos impõe a obrigação de rezarmos pelas almas do purgatório. Sim, porque, conforme ensina Santo Tomás, a caridade estende-se não só aos vivos, senão também a todos os que morreram na amizade de Deus; e, além disso, ela pede que socorramos especialmente aqueles próximos que mais precisem do nosso auxílio. Ora, quem dentre os nossos próximos está em tão grande necessidade de socorro, como essas santas prisioneiras? As infelizes ardem continuamente naquele fogo, que as atormenta muito mais do que qualquer fogo terrestre, e fá-las sofrer juntamente toda a espécie de suplícios cruciantes.

Mais. Em cada uma de suas faculdades padecem penas indizíveis. Aflige-as a vista pavorosa dos pecados, pelos quais amarguraram o seu Deus, a quem tanto amam, e atraíram sobre si mesmas as dores acerbas que estão sofrendo. Aflige-as a lembrança dos grandes benefícios recebidos de Deus, quando estavam na terra; e especialmente a lembrança daquelas misericórdias e graças especiais que lhes podiam adquirir mais merecimentos no paraíso, ao passo que só ganharam mais tormento no purgatório, porque não corresponderam às graças com a devida gratidão. Aflige-as finalmente e sobretudo o estarem longe de seu esposo, isto é, de Deus, sem sequer saberem quando terão a consolação de O irem ver.

O que, porém, mais nos deve excitar a aliviarmos essas santas almas é o pensamento de que entre elas penam talvez as almas de nossos pais, irmãos ou outros parentes e amigos e benfeitores; que não se podendo valer a si próprias, porque se acham em estado de satisfação pelas suas faltas, socorrem-se a nós por alívio e dizem-nos com Jó: Miseremini mei, miseremini mei, saltem vos amici mei (1) — “Compadecei-vos de mim, compadecei-vos de mim, ao menos vós que sois meus amigos”.

II. Examinemos o nosso procedimento para com as almas dos defuntos e particularmente para com as almas dos nossos parentes, amigos e benfeitores. Quero crer, meu irmão, que não és do número daqueles que, tendo adquirido uma herança, não se importam com o cumprimento das últimas vontades dos testadores, e por qualquer pretexto fútil se descuidam dos legados pios.

Mas atende bem que não sejas do número daqueles outros que, tendo pago a seus defuntos um pequeno tributo de lágrimas e satisfeito aquilo a que o obrigava a justiça mais rigorosa, depois se esquecem por completo daquelas almas santas e as tratam como se lhes fossem estranhas. Se for este o caso, ah, lembra-te que talvez em breve estejas também nessa prisão, ardendo nas chamas. Então o Senhor permitiria com justiça que teus supérstites te tratem da mesma maneira como tu trataste os teus antepassados: Eadem mensura, qua mensi fueritis, remetietur vobis (2) — “Com a mesma medida com que tiverdes medido, se vos há de medir a vós”.

“Ó meu Senhor Jesus Cristo, Rei da glória, livrai as almas de todos os fiéis defuntos das penas do purgatório. Livrai-as das goelas do demônio, a fim de que não sejam absorvidas pelo abismo e não venham a cair no inferno. Conduza-as o Arcanjo São Miguel àquela pátria bem-aventurada prometida a Abraão e a seus descendentes.”

“Ó Deus, que folgais em perdoar os pecadores e salvar os homens, suplicamos vossa clemência, pela intercessão da Bem-aventurada Maria sempre Virgem e de todos os Santos, concedei que os confrades de nossa congregação, parentes e benfeitores, que deixaram este mundo, cheguem à morada da eterna felicidade. — Dai, Senhor, o descanso eterno a essas almas benditas e a todas as que penam na prisão do purgatório; fazei brilhar para elas a luz perpétua e que elas possam em breve descansar na paz dos justos. Amém.”(3)

Referências:

(1) Jó 19, 21
(2) Lc 6, 38
(3) Orationes Eccl.


(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 233-235)

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III

Necessidade da oração

Crianças orando

Oportet semper orare et non deficere – “É preciso orar sempre e não deixar de o fazer” (Lc 18, 1)

Sumário. É certo que Deus, excetuando as primeiras graças, tais como a vocação para a fé ou penitência, nenhuma outra graça concede em regra geral (e menos ainda a perseverança) senão àquele que ora. Pelo que a oração é necessária aos adultos por necessidade de meio, de modo que o que ora, certamente se salva e o que não ora, certamente se condena. Este será o maior motivo de desespero para os réprobos, verem que tão facilmente se podiam salvar pela oração e que não há mais tempo para orar. Meu irmão, como usaste até hoje deste grande meio?

I. Afirma São João Crisóstomo que, assim como um corpo sem alma está morto, assim está morta a alma sem a oração. Diz ainda que, assim como a água é necessária às plantas para não murcharem, assim nos é necessária a oração para não nos perdermos.

Omnes homines vult salvos fieri (1) — Deus quer que todos os homens se salvem e não quer que ninguém se perca; mas ao mesmo tempo exige que lhe peçamos as graças necessárias para nos salvarmos, pois, por um lado, não podemos observar os preceitos divinos e salvar-nos sem a assistência atual do Senhor; e por outro, não nos quer Ele dar graças (ordinariamente falando), se lh´as não pedirmos. O santo Concílio de Trento declarou que Deus não nos impõe ordens impossíveis, visto dar-nos, ou a graça próxima e atual para as cumprirmos, ou a graça de lhe pedirmos essa graça atual.

Ensina-nos Santo Agostinho que, à exceção das primeiras graças, tais como a vocação para a fé ou conversão, Deus nenhuma outra concede (e especialmente a perseverança) senão àquele que ora. — D´aqui concluem os teólogos, com São Basílio, Santo Agostinho mesmo, São João Crisóstomo, Clemente de Alexandria e outros, que a oração é necessária aos adultos por necessidade de meio, de modo que sem a oração é impossível salvarem-se. E o sábio Lessio diz que esta doutrina se deve considerar artigo de fé.

As Sagradas Escrituras são claras: Oportet semper orare — “É preciso orar sempre”. Orate, ut non intretis in tentationem (2) — “Orai, para não cairdes em tentação”. Petite et accipietis (3) — “Pedi e recebereis”. Sine intermissione orate (4) — “Rezai sem cessar”. Estes termos: é preciso, orai, pedi, segundo a opinião comum dos teólogos, de acordo com Santo Tomás (5), têm força de preceito que obriga sob pecado grave, particularmente em três casos: quando se está em pecado, quando se está em perigo de morte e quando se está em grande risco de pecar. Os teólogos ensinam que ordinariamente o que passa um mês ou, quando muito, dois, sem rezar, não está livre de pecado mortal. A razão é que a oração é um meio sem o qual não podemos obter os socorros necessários para nos salvarmos.

II. O que pede, obtém; por consequência, diz Santa Teresa, o que não pede, não obtém. E o mesmo fora declarado muito antes por São Tiago: Non habetis, propter quod non postulastis (6) — “Não tendes nada, porque não pedistes”. A oração é particularmente necessária para obter a virtude de pureza:

“Sabendo que não podia ser continente, sem que Deus o desse, recorri ao Senhor e lh´o pedi.” (7)

— Numa palavra, concluamos: O que reza, certamente se salva; o que não reza, certamente se condena. Todos os que se salvaram, salvaram-se pela oração todos os que se condenaram, condenaram-se porque não rezaram. O seu maior motivo de desespero no inferno será o verem que tão facilmente se podiam salvar pela oração e que não há mais tempo para rezar.

Ó meu Redentor, como pude viver no passado tão esquecido de Vós? Estáveis pronto a conceder-me todas as graças que Vos pedisse; esperáveis somente que Vos suplicasse; mas eu só pensava em contentar os meus sentidos, pouco se me dando de ficar privado do vosso amor e da vossa graça. Senhor, não vos lembreis de tantas ingratidões minhas e tende piedade de mim. Perdoa-me todos os desgostos que Vos dei; dai-me a perseverança, dai-me a graça de pedir sempre o vosso auxílio para nunca mais Vos ofender, ó Deus de minha alma.

Não permitais, Senhor, que no futuro seja tão descuidado como no passado. Dai-me luz e força para sempre me recomendar a Vós, especialmente quando meus inimigos me tentarem para de novo Vos ofender. Meu Deus, concedei-me esta graça pelos merecimentos de Jesus Cristo e pelo amor que lhe tendes. Bastante Vos ofendi; quero amar-Vos o resto de meus dias. Dai-me o vosso santo amor e que esse amor me faça pedir o vosso auxílio, todas as vezes que me vir em perigo de Vos perder pelo pecado.

— Maria, minha esperança, de vós espero a graça de, em minhas tentações, me recomendar sempre a vós e a vosso Filho. Atendei-me, ó minha Rainha, pelo grande amor que tendes a Jesus Cristo.

Referências:

(1) 1Tm 2, 4
(2) Lc 22, 40
(3) Jo 16, 24
(4) 1Ts 5, 17
(5)

 Suma Teológica P. 3, q. 29, a. 5.
(6) Tg 4, 2
(7) Sb 8, 21


(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 230-233)

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III

FESTA DOS APÓSTOLOS SÃO SIMÃO E SÃO TADEU

"Annuntiaverunt opera Dei, et facta eius intellexerunt" - "Anunciaram as obras de Deus, e entederam os seus feitos" Psalm LXIII. 10

Sumário. Posto que o Evangelho e a Tradição nos digam pouco acerca das virtudes de São Tadeu e nada acerca das de São Simão, temos todavia uma garantia de sua santidade, por terem eles sido dignos de se tornarem apóstolos e mártires de Jesus Cristo. De quantas graças não deviam ser enriquecidos, quantas virtudes não praticaram para conseguirem esta dúplice glória! Se, à imitação destes santos apóstolos, cooperamos bem com a graça que Deus nos dá, poderemos ser também homens apostólicos e mártires de paciência. Por que então não fazê-lo?

I. Posto que o Evangelho e a Tradição pouco nos digam das virtudes de São Tadeu, e quase nada das de São Simão, podemos todavia medir-lhes a grandeza pela sua sublime dignidade de apóstolos de Jesus Cristo. Como apóstolos, ambos tiveram que abandonar para sempre os seus bens, a sua casa, os amigos e os parentes; tiveram que renunciar ao próprio juízo, à própria vontade, aos próprios sentimentos.

E tudo isto para seguirem Jesus Cristo, talvez menos conhecido pelos seus milagres do que pelo ódio que lhe tinham os grandes de Israel; para seguirem Jesus Cristo, que, como recompensa de tantos sacrifícios, lhes prometia, é verdade, os futuros bens celestiais, mas para a vida presente não lhes prometia senão misérias, perseguições e sofrimentos até a morte. — Ora, como teriam os apóstolos sido capazes de executar coisas tão difíceis, se não possuíssem uma virtude sólida, e especialmente uma fé viva, uma firme esperança e um amor ardentíssimo para com o divino Redentor?

Qual tenha sido o ardor do seu amor ao próximo, se pode deduzir do zelo com que trabalharam pela salvação dos homens, por meio da pregação do Evangelho. Depois de Pentecostes, São Simão foi evangelizar o Egito e com tamanho fruto que se mostrou digno do título de "Zelote", com que o distingue a Santa Escritura. — São Tadeu, chamado também "Irmão do Senhor", segundo a carne, percorreu para o mesmo fim a Síria e a Mesopotâmia. E, não contente de trabalhar tão felizmente para a conversão dos gentios, quis estender o seu amor a todos os fiéis, e, por inspiração divina, escreveu a sua Epístola católica, na qual os anima a estarem firmes na fé e a usarem da oração, para se manterem no amor de Deus. In Spiritu Sancto orantes, vosmetipsos in dilectione Dei servate (1) – "Orando pelo espírito Santo, conservai-vos no amor de Deus". – Regozija-te com os santos apóstolos, agradece a Deus em seu nome, e procura ser também homem apostólico, pela imitação das suas virtudes.

II. Não há amor maior nem mais heróico que o que dá a vida pelo amigo: "Maiorem hac dilectionem nemo habet, ut animam suam ponat quis pro amicis suis (2)". Foi a este grau heroico que chegou a virtude de São Simão e de São Tadeu, pois que ambos coroaram os seus trabalhos com um generoso martírio. — Depois de terem trabalhado separadamente na pregação do Evangelho, reuniram-se na Pérsia, afim de pregarem juntos e com mais eficácia naquelas vastíssimas regiões. E tão bem fôram sucedidos, que os sacerdotes dos ídolos, encolerizando-se, excitaram a população a matar os nossos Santos. — Diz a tradição que São Tadeu foi degolado e São Simão serrado ao meio, pelo que um machado e uma serra são os símbolos de seu martírio.

Regozija-te novamente com os santos Apóstolos, e escolhe-os novamente para teus protetores especiais junto de Deus. Já que não tens a dita de os poderes imitar dando a vida por Jesus Cristo, esforça-te ao menos por imitá-los na paciência, suportando com resignação o mal que te sobrevier. Diz São Francisco de Sales que o "serviço de Deus consiste mais no padecer do que no obrar". — Oferece também a Jesus Cristo o sacrifício da tua vida, pronto para morrer quando, onde e como ele quer; e desde hoje aceita a morte com todas as penas que a possam acompanhar, afim de satisfazeres a justiça divina e dares à divina bondade uma prova de amor que lhe tens. Por esta intenção implora a intercessão dos santos Apóstolos, e lembra-te que a aceitação da morte, para cumprirmos a vontade divina, noz faz merecer uma recompensa igual à dos mártires, que são mártires exatamente por terem abraçado a morte para agradarem a Jesus Cristo.

"Ó Deus, que por meio dos vossos apóstolos São Simão e São Tadeu me fizestes vir ao conhecimento do vosso Nome, concedei-me que, celebrando a sua glória eterna, cresça mais e mais na piedade (3)". Fazei-o pelo amor de Jesus e Maria.

Referências:

(1) 📖 - Jud I. 20
(2) 📖 - Jo XV. 13
(3) Or. Festi

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Duodécima semana depois de Pentecostes até ao fim do ano Eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 380-382)

Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III

 Das penas do Inferno

Das penas do Inferno

Omnis dolor irruet super eum“Toda a sorte de dores virá sobre ele” (Jó 20, 22)

Sumário. É artigo de fé que há um inferno, isto é, uma prisão miserabilíssima toda cheia de fogo, onde cada sentido e cada faculdade do réprobo sofrem uma pena particular. Enquanto fazemos esta meditação, tantos cristãos desgraçados, talvez da mesma idade que nós, talvez conhecidos nossos, estão ardendo nessa fornalha ardente, sem a mínima esperança de saírem de lá. Reflete agora, meu irmão: qual é o estado de tua consciência? Se o Senhor te deixasse morrer na primeira noite, para onde iria a tua alma?

I. Considera que o inferno é uma prisão miserabilíssima, toda cheia de fogo. Nesse fogo estão submergidos os réprobos, tendo um abismo de fogo acima de si, um abismo ao redor de si e um abismo abaixo de si. Fogo há nos olhos, fogo na boca, fogo por todos os lados.

Cada um dos sentidos sofre a sua pena própria. Os olhos são cegados pela fumaça e pelas trevas, e aterrados pela vista dos outros condenados e réprobos. Os ouvidos ouvem dia e noite urros, gemidos e blasfêmias. O olfato é empestado pelo mau cheiro daqueles inumeráveis corpos infectos. — O gosto é atormentado por uma sede ardentíssima e uma fome devoradora sem jamais obter uma gota de água nem um pedaço de pão. Por isso os desgraçados prisioneiros, ardendo em sede, devorados pelo fogo, cruciados por toda a espécie de tormentos, choram, urram e se desesperam. Mas não há, nem haverá jamais, quem os alivie ou console. Oh inferno, oh inferno! Como é que alguns não querem crer em ti, senão quando se veem precipitados dentro de ti!

Considera depois as penas que sofrerão as faculdades da alma. A memória será atormentada pelo remorso de consciência. O remorso é aquele verme que está roendo sempre no condenado ao pensar que se condenou por culpa própria, por uns poucos prazeres envenenados. Oh meu Deus! Como se lhe afigurarão aqueles prazeres momentâneos depois de cem, depois de mil milhões de anos? O verme do remorso lhe recordará o tempo que Deus lhe deu para salvação; a facilidade que teve de se salvar; os bons exemplos dos companheiros; as resoluções tomadas, mas não cumpridas. Verá então que não pode mais remediar a sua ruína eterna. Oh meu Deus, meu Deus! Que inferno no inferno será este! — A vontade será sempre contrariada; não terá nada do que deseja e terá sempre aquilo que não quer, isto é, toda a espécie de tormentos. O entendimento conhecerá o grande bem que perdeu, a saber: Deus e o paraíso. – Ó Senhor, perdoai-me, pelo amor de Jesus Cristo!

II. Meu irmão, dize-me se agora tivesses de morrer, para onde iria a tua alma? Não sabes suportar uma centelha caída de uma vela sobre tua mão e poderá suportar a permanência num abismo de fogo devorador, desolado e desamparado de todos, por toda a eternidade? — Ah! Quantos da mesma idade que tu, talvez conhecidos e companheiros teus, estão agora ardendo naquela fornalha ardente, sem a mínima esperança de poderem remediar a sua desgraça!

Agora talvez não te importe perder o paraíso e Deus; conhecerás porém a tua cegueira, quando vires os bem-aventurados em triunfo e no gozo do reino dos céus, e tu, como um cão lazarento, fores excluído daquela pátria feliz, da bela presença de Deus, da companhia de Maria Santíssima, dos Anjos e dos Santos. Então gritarás enfurecido: Ó paraíso de felicidades, ó Deus, Bem infinito, não sois nem sereis jamais para mim! — Ânimo, pois, faze penitência, muda de vida; não esperes que não haja mais tempo para ti. Pede a Jesus, pede a Maria que tenham piedade de ti.

Aqui tendes, Senhor, a vossos pés, o desgraçado que tão pouco caso fez da vossa graça e dos vossos castigos. Ai de mim! Quanto anos já devia estar abandonado por Vós e ardendo na fornalha do inferno! Mas vejo que me quereis salvar a todo o preço, porquanto com tamanha bondade me ofereceis o perdão, se eu quiser detestar os meus pecados; ofereceis-me a vossa graça e o vosso amor, se eu Vos quiser amar. Sim, meu Jesus, quero sempre chorar as ofensas que Vos fiz e amar-Vos de todo o meu coração. — Fazei-me saber o que quereis; quero satisfazer-Vos em tudo. Permiti que eu viva e morra em vossa graça; não me mandeis ao inferno onde não Vos poderia mais amar e disponde de mim segundo a vossa vontade.

— Ó Maria, minha esperança, guardai-me sob a vossa proteção e não permitais que eu venha ainda a perder o meu Deus.


(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 228-230)

domingo, 27 de outubro de 2024

Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: 23º Domingo depois de Pentecostes

 A filha de Jairo, a hemorroíssa, e a alma pecadora

Ressurreição da filha de Jairo


Domine, filia mea modo defuncta est: sed veni, impone manum tuam super em et vivet“Senhor, nesta hora acaba de expirar minha filha; mas vem, impõe sobre ela a tua mão, e viverá” (Mt 9, 18)

Sumário. Meu irmão, se porventura te achares enfermo espiritualmente por causa do pecado, imita a hemorroíssa, da qual nos fala o Evangelho, chega-te a Jesus, na pessoa de seu representante, o sacerdote, no sacramento da penitência. Se, como espero, a consciência não te acusa de pecado grave, imita a confiança de Jairo, e roga ao Senhor faça reviver espiritualmente tantos pecadores, teus irmão. Considera, porém, atentamente que não seja daqueles que têm o nome de vivos e estão mortos ou moribundos por causa de sua tibieza.

I. Refere o Evangelho que, “enquanto falava aos judeus, acercou-se um príncipe, e o adorou dizendo: Senhor, nesta hora acaba de falecer minha filha; mas vem, impõe sobre ela tua mão e viverá. E Jesus, levantando-se, o foi seguindo com os seus discípulos. E eis que uma mulher, que havia doze anos padecia um fluxo de sangue, chegou-se por detrás dele e lhe tocou a fimbria do vestido. Porque dizia consigo: Se tocar ao menos o seu vestido, estarei curada. E, voltando-se Jesus e vendo-a, disse: Tem confiança, filha, tua fé te sarou. E ficou sã a mulher desde aquela hora – “Et salva facta est mulier ex illa hora.

Diz Cornélio a Lapide, que tanto a hemorroíssa como a jovem morta são figuras da alma pecadora, a qual Jesus Cristo quer ressuscitar para a vida espiritual e livrar do desregramento da concupiscência, figurado pelo fluxo de sangue. E São Boaventura, refletindo sobre este trecho do Evangelho, dirige-se ao pecador e diz:

“Aquela jovem é tua alma, morta há pouco pelo pecado; converte-te já para Deus: Festina conversionem.”

– Portanto, meu irmão se porventura tens ofendido a Deus, imita a fé daquela pobre mulher e chega-te a Jesus, na pessoa de seu ministro, no tribunal da penitência. E não tardes em fazê-lo, porque, se fores adiando, virá talvez sobre ti a ira de Deus e te mandará ao inferno (1).

Se, porém, como espero, não tens pecado grave na alma, imita a Jairo, pai da jovem, e roga ao Senhor venha com a sua graça e faça ressuscitar espiritualmente tantos pecadores, teus irmãos. – Considera todavia atentamente não sejas do número daqueles de quem diz São João: “Tem reputação de que vivem, mas estão mortos”, ou quase moribundos por causa de sua tibieza (2).

II. Continua o Evangelista dizendo que “chegado Jesus à casa do príncipe, vendo os músicos e um bando de gente em alarido, disse: Retirai-vos; porque não está morta a menina, mas dorme. E zombavam dele. Tendo saído a gente, entrou Jesus e tomou-a pela mão. E a menina se levantou. E correu esta fama por toda aquela terra.

Observa, diz São Gregório, que antes de ressuscitar a menina, Jesus manda a gente sair e faz cessar o alarido. Isso nos ensina que para ressurgirmos do pecado ou da tibieza, devemos afastar de nós esse tropel de pensamentos e afetos desordenados, esse tumulto de cuidados terrestres e de conversações supérfluas. – Acrescenta o evangelista São Marcos, que depois da ressurreição da menina, o Senhor a fez andar e ordenou que lhe dessem de comer (3). É o que nós também devemos fazer depois de ressuscitados para a vida da graça. Não devemos ficar parados, senão andar no caminho da perfeição e com este fim alimentar-nos com o Pão dos Anjos. Os santos ensinam unanimemente que não progredir no caminho do Senhor é voltar para trás: In via Domini non progredi retrogredi est.

Ó meu amado Jesus, eu me esqueci de Vós, mas vejo que Vós não Vos esquecestes de mim. Agradeço-Vos as luzes que me comunicais e peço-Vos “queirais absolver-me de todos os meus delitos, para que, por vossa liberalidade, seja livre dos grilhões das culpas que por minha fraqueza contraí.”(4)

† Doce coração de Maria, sede minha salvação.

Referências:

(1) Ecle 5, 8
(2) Ap 3, 1
(3) Mc 5, 43
(4) Or. Dom. curr.


(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 225-227)

MEDITAÇÃO PARA FESTA DE CRISTO REI



Ó Jesus, Príncipe dos séculos, Rei das gentes, sede o único Rei da minha mente e do meu coração.

1 — A liturgia de hoje é um verdadeiro hino triunfal em honra da Realeza de Cristo. Desde as primeiras Vésperas da festa, a figura de Jesus apresenta-se majestosa, sentada no trono real que domina todo o mundo: "O Seu reino é um reino sempiterno; todos os reis O hão de servir e Lhe hão de obedecer. Assentar-se-á e dominará e anunciará paz aos povos". A Missa principia com a visão apocalíptica deste Rei singular, cuja realeza está intimamente ligada à Sua imolação pela salvação dos homens: "Digno é o cordeiro que foi imolado, de receber o poder e a divindade, a sabedoria e a força e a honra. A Ele a glória e o império pelos séculos dos séculos" (Intróito).

Na Epístola (Col I. 12-20), São Paulo enumera os títulos que fazem de Cristo o Rei de todos os reis. "Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criatura; porque n'Ele foram criadas todas as coisas nos Céus e na Terra, as visíveis e as invisíveis". Estes títulos pertencem a Cristo como Deus, imagem perfeita do Pai, causa exemplar de todas as criaturas terrestres e celestes e também como Criador, juntamente com o Pai e o Espírito Santo, de tudo quanto existe, de modo que nada existe sem Ele, mas "tudo foi criado por Ele e para Ele… e todas as coisas subsistem por Ele". Seguem-se os títulos da Sua realeza como homem: "Ele é a cabeça do Corpo da Igreja (…) e foi do agrado de Deus que por Ele fossem reconciliadas consigo todas as coisas, pacificando-as pelo Sangue da Sua Cruz". Sendo já nosso Rei pela Sua divindade, é-o igualmente em virtude da Sua Encarnação, que O constituiu Cabeça da humanidade e também pela Sua Paixão, mediante a qual reconquistou as nossas almas, que já Lhe pertenciam como criaturas, à custa do Seu Sangue. Jesus é nosso Rei no sentido mais amplo da palavra: criou-nos, remiu-nos, vivifica-nos com a Sua graça, alimenta-nos com a Sua carne e com o Seu Sangue, governa-nos com o Seu amor e através do amor atrai-nos para Si. Em face de tais considerações, brota espontaneamente do nosso coração o grito de S. Paulo: "Demos graças a Deus Pai (…) que nos livrou do poder das trevas e nos transferiu para o reino do Filho do seu amor, no qual temos a Redenção, a remissão dos pecados".

2 — No Evangelho do dia (Jo. XVIII. 33-37), temos a mais autorizada proclamação da Realeza de Cristo, pois saiu dos Seus próprios lábios, num momento soleníssimo, no processo que precedeu a Sua Paixão. Pilatos interroga-O precisamente a este respeito: "Tu és o rei dos Judeus?" A esta primeira pergunta Jesus não responde diretamente; Ele, com efeito, não é rei de um povo determinado e o Seu reino nada tem que ver com os reinos da Terra. Mas à segunda pergunta, mais exata que a primeira: "Logo, tu és rei?", responde sem reticências: "Tu o dizes, sou rei". Jesus declara a Sua realeza do modo mais formal, diante da suprema autoridade da Palestina e declara-a não no meio de um povo que aplaude, nem no meio do triunfo dos Seus milagres, mas preso com cadeias, diante daquele que está para O condenar à morte, na presença de um povo sedento do Seu sangue, poucos momentos antes de ser arrastado para o Calvário onde, no alto da Cruz, acima da Sua cabeça coroada de espinhos, aparecerá pela primeira vez o título da sua realeza: "Jesus Nazareno, Rei dos Judeus" (Jo. XIX. 19). Ele, que fugira quando as turbas entusiasmadas O queriam fazer seu rei, proclama-Se rei no meio das inauditas humilhações da Paixão, afirmando assim claramente que o Seu reino não é deste mundo, que a Sua realeza é tão sublime que nenhum vitupério, nenhum ultraje a pode ofuscar. Mas com este gesto, Jesus diz-nos também que gosta muito mais de fazer resplandecer a Sua realeza sob o aspecto de conquista realizada à custa do Seu Sangue, do que sob um título que Lhe pertence em virtude da Sua natureza divina.

Com todo o ímpeto da nossa alma, devemos ir ao encontro deste Rei divino que Se nos apresenta sob um aspecto tão humano, tão amoroso, tão acolhedor, deste Rei divino que estende os Seus braços sobre a Cruz, a fim de a todos nos atrair a Si, que nos mostra a chaga do lado como símbolo do Seu amor. Não somente não queiramos fugir ao Seu império, mas peçamo-lo, solicitemo-lo, para que Ele tenha o primado na nossa mente e no nosso coração, para que exerça um pleno domínio sobre a nossa vontade; nós, com tudo o que temos, queremos sujeitar-nos "ao Seu suavíssimo império" (Colecta).

— Extraído do Livro Intimidade Divina. Pe. Gabriel de Santa Maria Madalena O.C.D. Segunda edição (Traduzida da 12ª edição italiana) — 1967.

sábado, 26 de outubro de 2024

Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III

 Maria Santíssima, modelo de Oração

Maria, modelo de Oração

Oportet semper orare et non deficere – “Importa orar sempre e não cessar de o fazer” (Lc 18, 1)

Sumário. Desde o instante em que a Santíssima Virgem recebeu a vida, e com esta o uso perfeito da razão, começou também a orar e nunca mais deixou de orar até ao seu último suspiro. Se Maria, tão santa e imaculada, foi tão amante da oração, quanto mais nós a devemos amar, que estamos tão propensos ao mal e temos inimigos tão fortes que combater? À imitação de nossa querida Mãe, habitemos com os nossos afetos no céu, nunca percamos de vista a eternidade e seja a oração o nosso único ornato.

I. Jamais existiu neste mundo quem com tanta perfeição como a Santíssima Virgem executasse o grande preceito de nosso Salvador: Importa orar sempre e não cessar de o fazer. Pelo que diz São Boaventura, que ninguém melhor que Maria nos pode servir de exemplo e ensinar a necessidade que temos de perseverar na oração.

Primeiramente, como escreve Dionísio o Cartusiano, a oração da Virgem foi toda recolhida e sem distração alguma. Isenta como ficara do pecado original, estava também livre de qualquer afeto terrestre e de todo o movimento desordenado, e todos os seus sentidos estavam sempre em harmonia com o seu bendito espírito. Assim a sua bela alma, livre de todo o empecilho, elevava-se incessantemente a Deus, amava-O sempre e crescia sempre no amor.

A oração da Bem-aventurada Virgem foi além disso continua e perseverante. Desde o primeiro momento em que juntamente com a vida ela recebeu o uso perfeito da razão, começou também a fazer oração. Para melhor se aplicar à oração quis, sendo menina de três anos, encerrar-se no templo, e ali, além das outras horas destinadas à oração, levantava-se sempre à meia noite, como ela mesma disse à santa virgem Isabel, para orar diante do altar do templo.

Com tal fim também, e para sempre meditar nas penas de Jesus, como diz Odilon, Maria, depois da Ascensão do Senhor, visitava muitas vezes os lugares santos da Palestina, ora a Gruta de Belém, onde o Filho nasceu; ora a casa de Nazaré, onde o Filho viveu tantos anos, pobre e desprezado, ora o horto de Getsêmani, onde o filho começou a sua Paixão; ora o pretório de Pilatos, onde foi açoitado e coroado de espinhos; ora o Calvário, onde o viu expirar; e, finalmente, o sepulcro, no qual o acomodou com as suas próprias mãos. — Numa palavra, toda a vida da Santíssima Virgem foi uma oração contínua. E, como conclui o Bem-aventurado Alberto Magno, ela foi excelentíssima nesta virtude, e depois de Jesus Cristo a mais perfeita de todos quantos tem existido, existem ou existirão. Felizes de nós se a soubermos imitar!

II. Se Maria, toda santa e imaculada como era, foi sempre tão amante da oração, para se conservar e crescer na graça divina, com muito mais razão devemos nós amar e praticar esta virtude, nós que tão fracos somos, tão propensos ao mal, e que temos inimigos tão poderosos para combater e vencer. — Tratemos, pois, de imitar o espírito de oração de nossa boa Mãe, e procuremos reproduzir em nós o que o devoto Taulero diz da Santíssima Virgem: Mariae cella fuit coelum — “A morada de Maria foi o céu”. Seja o céu também a nossa habitação, e fixemos nele pelo afeto a nossa morada contínua. Schola aeternitas — “A sua escola foi a eternidade”. Nunca percamos de vista a eternidade, vivendo sempre desapegados dos bens terrestres. Paedagogus divina veritas — “Seu mestre foi a verdade divina”. Tomemos por nosso mestre aquele que é a verdade essencial, e guiemo-nos em nossas ações pela luz divina. Speculum divinitas — “O seu espelho foi a divindade”. Sirva-nos a divindade de espelho; tenhamos sempre Deus em mira, para nos conformarmos com a sua vontade. Ornatus eius devotio — “O seu adorno foi a devoção”. Seja também a devoção o nosso ornato, e estejamos sempre prontos a fazer a vontade de Deus. Numa palavra, façamos consistir a nossa paz na união com Deus, e seja Deus todo o repouso e todo o tesouro de nossa alma: Quies, unitas cum Deo.

Ó grande Mãe de Deus, proponho-me sempre a imitar os vossos santos exemplos e especialmente o vosso espírito de oração. Vós, porém, que conheceis a minha fraqueza e inconstância no bem, ajudai-me pela vossa intercessão. Fazei-me pontual em recomendar-me sempre a vós e a vosso Filho em todas as minhas necessidades, sobretudo nos perigos de ofender o meu Senhor. Minha Rainha, atendei-me; fazei-o pelo grande amor que tendes a Jesus Cristo.

Referências:


(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 223-225)

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III

 Sexta palavra de Jesus Cristo na Cruz

"Tudo está consumado" - Sexta palavra de Jesus na Cruz

Cum ergo accepisset Jesus acetum, dixit: Consummatum est – “Jesus, havendo tomado o vinagre, disse: Tudo está consumado” (Jo 9, 30)

Sumário. Consideremos como Jesus moribundo, antes de expirar, percorreu em espírito toda a sua vida. Viu todos os seus trabalhos penosos, as suas dores, as ignomínias suportadas e tudo isso ofereceu-o de novo a seu eterno Pai para a salvação do mundo. Em seguida, virando-se para nós, disse: Tudo está consumado. — Foi como se dissesse: “Ó homens, nada mais tenho a fazer para ser amado por vós; tempo é que afinal resolvais amar-me.” Amemos, portanto, a Jesus e provemos-Lhe nosso amor fazendo e sofrendo alguma coisa por seu amor, assim como Ele fez e sofreu tanto por nosso amor.

 

 I. Nosso amabilíssimo Jesus, chegado o momento de render o último suspiro, disse com voz moribunda: Tudo está consumado. Pronunciando estas palavras, repassou em seu pensamento todo o decurso de sua vida, viu todos os seus trabalhos, a pobreza, as dores, as ignomínias que tinha sofrido e tudo ofereceu de novo a seu Pai pela salvação do mundo. Depois, voltando-se para nós disse: Tudo está consumado. — Foi como se dissesse: Homens, tudo está consumado, tudo está cumprido; a ora da vossa redenção se completou, a divina justiça está satisfeita, o paraíso está aberto. Et ecce tempus tuum, tempus amantium (1) — “Eis aqui o vosso tempo, o tempo dos que amam”. É tempo, enfim, ó homens, de vos resolverdes a amar-me. Amai-me, pois, amai-me; porque nada mais tenho a fazer para ser amado por vós.

Tudo está consumado. Vede, disse então Jesus moribundo, vede o que tenho feito para adquirir o vosso amor. Por Vós tenho levado uma vida cheia de tribulações; no fim de meus dias, antes de morrer, consenti que fosse derramado o meu sangue, que me escarrassem no rosto, que me despedaçassem o corpo, que me coroassem de espinhos; finalmente, sujeitei-me a suportar as dores da agonia sobre este madeiro em que me vedes. Que resta fazer? Uma só coisa: expirar por vós. Sim, quero morrer. Vem, ó morte, eu to permito, tira-me a vida pela salvação de minhas ovelhas, amai-me, amai-me, porque já não posso ir mais longe para me fazer amar. Consummatum est — “Tudo está consumado”.

Amemos, pois, a nosso Jesus, e, conforme à exortação do Apóstolo, provemos-Lhe nosso amor, correndo com paciência generosa ao combate que em vida teremos de sustentar conta os nossos inimigos espirituais; provemos-lho resistindo até ao fim as tentações, a exemplo de Jesus Cristo mesmo, que não desceu da cruz antes de expiar e quis consumar o seu sacrifício até morrer: Per patientiam curramus ad propositum nobis certamen, aspicientes in auctorem fidei et consummatorem Iesum (2) — “Corramos pela paciência ao combate que nos é proposto, olhando para o autor e consumador da fé, Jesus”.

II. Quando as paixões interiores, as tentações do demônio, ou as perseguições da parte dos bons, nos fizerem perder a paciência e aceitar a ofensa de Deus, olhemos para Jesus crucificado que derramou todo o seu sangue pela nossa salvação e lembremo-nos que por seu amor não temos ainda derramado uma só gota de sangue: Nondum enim usque ad sanguinem restitistis, adversus peccatum repugnantes (3) — “Ainda não resististes até o sangue, combatendo contra o pecado”.

Quando tivermos de ceder em algum pundonor, de reprimir algum ressentimento, de nos privarmos de alguma satisfação, de alguma curiosidade ou de outra coisa inútil à nossa alma, tenhamos pejo de o recusarmos a Jesus Cristo. Jesus se nos deu sem reserva, deu-nos toda a sua vida, todo o seu sangue: tenhamos, pois, pejo de usarmos de reserva para com Ele. Não nos enfastiemos de fazer e sofrer alguma coisa por amor de Jesus Cristo, que por nossa salvação chegou, no dizer de Taulero, “a consumar tudo o que a justiça divina exigia, tudo o que o amor pedia, tudo o que podia dar um claro testemunho de seu amor”.

Meu amabilíssimo Jesus, tomara que eu também pudesse dizer morrendo: Senhor, tudo está consumado; tenho feito tudo que me mandastes, tenho levado com paciência a minha cruz, tenho procurado agradar-Vos em tudo. Ah, meu Deus! Se tivesse de morrer agora, morreria bem descontente de mim mesmo, pois nada disto poderia dizer. Mas, Senhor, viverei sempre tão ingrato ao vosso amor? Suplico-Vos que me concedais a graça de Vos agradar nos anos de vida que me restam, a fim de que, quando vier a morte, possa dizer-Vos que ao menos desde o dia de hoje cumpri a vossa vontade. — Se no passado Vos ofendi, a vossa morte é a minha esperança; para o futuro não Vos quero trair mais. De Vós espero a minha perseverança; eu a peço e o espero, ó meu Jesus, pelos vossos merecimentos. — Ó Maria, Mãe das dores, ajudai-me pela vossa intercessão.

Referências:

(1) Ez 6, 8
(2) Hb 12, 1
(3) Hb 12, 4


(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 220-223)

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III

O que tenha de fazer a alma na presença de Jesus no Santíssimo Sacramento

Santo Sacramento de Amor

Delectare in Domino, et dabit tibi petitiones cordis tui – “Deleita-te no Senhor, e te outorgará as petições do teu coração” (Sl 36, 4)

Sumário. Estas palavras ensinam-nos como temos de nos haver na presença de Jesus no Santíssimo Sacramento. Diante do tabernáculo, agradeçamos ao Senhor os muitos benefícios que nos fez, especialmente o querer Ele ficar conosco sobre o altar; amemo-Lo com todas as nossas forças e ofereçamo-nos a Ele sem reserva. Afinal supliquemos a Jesus Cristo as graças de que necessitamos, principalmente o aumento do amor e a união à sua vontade divina. Oh! Se nós soubéssemos aproveitar bem da companhia de nosso divino amante, em breve seríamos todos santos

 

I. A condessa de Feria, feita religiosa de Santa Clara, escolheu uma cela donde se avistava o altar do Santíssimo Sacramento, e aí se demorava quase todo o tempo, de dia e de noite. Perguntada sobre o que fazia durante longas horas na igreja, respondeu:

“Ah! Eu ficaria ali durante toda a eternidade. Que é o que se faz diante do Santíssimo Sacramento? Agradece-se, ama-se e pede-se.”

— Eis ai, meu irmão, um belo método para aproveitares bem o tempo na presença de Jesus no Santíssimo Sacramento.

Em primeiro lugar, agradece-se. És tão agradecido a um parente que veio de longe para te visitar, e não tens uma palavra de gratidão para Jesus Cristo, que desceu do céu, não só para te visitar, mas para estar sempre contigo? Quando, pois, o visitares, antes de mais nada aviva a tua fé, adora o Esposo de tua alma e rende-Lhe graças pela bondade com que por teu amor fixou a sua morada sobre esse altar.

Em segundo lugar, ama-se. Quando São Filipe Neri na sua doença viu o santo Viático em seu quarto, exclamou todo abrasado em amor: Eis ai o meu amor! Eis ai o meu amor! Assim dize tu também, quando vires a sagrada Custódia; multiplica então os atos de amor que tanto agradam a Jesus, e renunciando a toda vontade própria consagra-te a Ele todo e sem reserva, dizendo: Senhor, fazei com que eu sempre Vos ame, e depois disponde de mim como Vos agradar.

Por fim, pede-se. O Venerável Padre Alvarez viu no Santíssimo Sacramento Jesus com as mãos cheias de graças, mas sem achar a quem distribuí-las, porque ninguém ia pedi-las. Portanto, pede-as tu; roga-lhe que te dê força para resistir às tentações, para te emendar de qualquer defeito, para te livrar de alguma paixão… Pede-lhe em particular que aumente em teu coração a chama de seu amor e te conserve bem unido a sua santa vontade, fazendo-te sofrer em paz todos os desprezos e contrariedades. Ah! Se todas as almas fizessem assim e soubessem aproveitar-se bem da companhia de seu divino Esposo, em breve todas se tornariam santas.

II. Ó meu Jesus, eu vos adoro no Santíssimo Sacramento do altar. Vós sois o mesmo Jesus que um dia por meu amor sacrificastes a vossa vida divina sobre a cruz e agora estais encerrado na Custódia, como em uma prisão de amor. Entre tantos outros que Vos ofenderam menos do que eu, quisestes escolher-me para Vos fazer companhia sobre a terra, a fim de que depois Vos vá amar e gozar sem véu no paraíso. Além disso me convidais a alimentar-me muitas vezes na santa comunhão com a vossa santa carne, afim de me unir todo a Vós e me fazer todo vosso. Meu amado Redentor, que Vos poderei dizer? Agradeço-Vos e espero ir um dia agradecer-Vos no céu por toda a eternidade: Miserircordias Domini in aeternum cantabo (1) — “Eu cantarei eternamente as misericórdias do Senhor”. Sim, meu Jesus, assim espero pelos vossos merecimentos.

Declaro que estou mais contente por ter deixado por vosso amor o mundo e o pouco de que no mundo podia gozar, do que por ser rei de toda a terra. Arrependo-me de Vos ter dado até agora em vossa casa tantos desgostos pelos quais merecia ser expulso. Perdoai-me, ó meu Jesus; com o vosso auxílio d´oravante não será mais assim. Não me quero mais afastar de vossos pés, quero visitar-Vos muitas vezes. A vossa presença me dará forças para desprender-me de todo o afeto que não seja para Vós; perto de Vós lembrar-me-ei sempre da obrigação que tenho de Vos amar e de recorrer a Vós em todas as minhas necessidades. Desejo permanecer sempre a vossos pés e receber-Vos freqüentemente na comunhão, a fim de Vos amar sempre mais e unir-me convosco, meu amado Salvador.

Amo-vos, ó meu Deus, oculto no Santíssimo Sacramento. Por amor meu é que ficais continuamente neste altar; por vosso amor, quero ficar o mais que puder na vossa presença. Aqui encerrado me amais sem cessar e eu também Vos quero amar sem cessar; assim, meu Jesus e meu tudo, estaremos sempre juntos aqui durante a minha vida e depois durante a eternidade no paraíso.

— Ó Maria, minha Mãe, rogai a Jesus por mim e consegui-me um grande amor ao Santíssimo Sacramento.

Referências:

(1) Sl 88, 2


(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 217-220)

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III

Para a Salvação é necessário o sacrifício da vontade própria

Sacrifício de Isaac (Caravaggio)
Sacrifício de Isaac (Caravaggio)

Qui facit voluntatem Patris mei, qui in coelis est, ipse intrabit in regnum coelorum – “O que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse entrará no reino dos céus” (Mt 7, 10)

Sumário. O que faz a vontade de Deus, entrará no céu; o que não a faz, não entrará. Se portanto quisermos ser salvos, renunciemos à nossa vontade própria, e entregando-a sem reserva a Deus, digamos frequentes vezes cada dia: Senhor, ensinai-me a cumprir a vossa vontade santíssima; protesto não querer senão o que quereis Vós. Para que estejamos sempre dispostos a cumprir a vontade divina, é utilíssimo que desde de manhã nos representemos as contrariedades que nos possam suceder durante o dia.

I. O que faz a vontade de Deus, entrará no céu; o que não a faz, nele não entrará. Alguns fazem depender a sua salvação de certas devoções, de certas obras exteriores de piedade, e entretanto não cumprem a vontade de Deus. Jesus Cristo, porém, diz: “Não todos aqueles que me dizem: Senhor, Senhor, entrarão no reino dos céus; mas entrará somente o que faz a vontade de meu Pai” — Qui facit voluntatem Patris mei, qui in coelis est, intrabit in regnum coelorum.

Portanto, se nos quisermos salvar e chegar à união perfeita com Deus, habituemo-nos a rogar-lhe sempre com Davi: Doce me, domine, facere voluntatem tuam (1) — “Senhor, ensinai-nos a fazer a vossa santa vontade.” Ao mesmo tempo desfaçamo-nos da vontade própria e entreguemo-la toda inteira e sem reserva a Deus. — Quando damos a Deus os nossos bens pela esmola, o alimento pelo jejum, o sangue pela disciplina, damos-lhe a nossa própria pessoa. Eis porque o sacrifício da vontade própria é o sacrifício mais aceito que possamos fazer a Deus; e Deus enriquece de graças ao que o faz.

Porém, para que tal sacrifício seja perfeito, deve ter duas qualidades: deve ser feito sem reserva e constantemente. Alguns dão a Deus a sua vontade, mas com reserva, e semelhante dádiva pouco agrada a Deus. Outros dão a Deus a sua vontade, mas logo em seguida tornam a retomá-la, e estes se expõem a grande risco de serem abandonados de Deus. Por isso, todos os nossos esforços, desejos e orações devem ser dirigidos ao fim de obtermos de Deus a perseverança em não querermos senão o que Deus quer. Habituemo-nos a antever desde de manhã, no tempo da meditação, as tribulações que nos possam suceder no correr do dia e a fazermos continuamente atos de resignação à vontade Divina. Diz São Gregório: Minus iacula feriunt, quae praevidentur — “São menos dolorosas as feridas antevistas”.

II. Meu Jesus, cada vez que eu disser: Louvado seja Deus, ou Seja feita a vontade de Deus, tenho intenção de aceitar todas as vossas disposições a meu respeito, no tempo e na eternidade. — Só quero o emprego, a habitação, os vestuários, o nutrimento, a saúde que me tendes destinado. Se quereis que meus negócios não surtam feliz êxito, meus projetos se esvaeçam, meus processos se percam, tudo quanto possuo seja roubado, eu também o quero. Se quereis que eu seja desprezado, odiado, posposto aos outros, difamado e maltratado, até por aqueles a quem mais amo, eu também o quero. Se quereis que eu fique privado de tudo, banido de minha pátria, encerrado numa prisão e viva em penas e angústias contínuas, eu também o quero. Se quereis que esteja sempre enfermo, coberto de chagas, estropiado, estendido sobre um leito, abandonado de todos, eu também o quero; tudo seja como Vos agradar e por quanto tempo quiserdes.

Minha vida mesma ponho nas vossas mãos e aceito a morte que me destinais; aceito igualmente a morte de meus parentes e amigos e tudo o que quiserdes. Quero também tudo o que quereis no que diz respeito ao meu bem espiritual. Desejo Vos amar com todas as minhas forças nesta vida e ir Vos amar no paraíso como Vos amam os Serafins; mas contente fico com o que bem quiserdes conceder-me. Se não quereis dar-me senão um só grau de amor, graça e glória, não quero mais do que isto, porque Vós assim o quereis. Prefiro o cumprimento de vossa vontade a todos os bens.

Numa palavra, ó meu Deus, de mim e de tudo o que me pertence, disponde como for vossa vontade; com a minha não tenhais consideração alguma, pois só quero o que Vós quereis. Qualquer que seja o tratamento que me deis, amargo ou doce, agradável ou penoso, aceito-o e abraço-o, porque tanto um como outro me virá de vossa mão. — Aceito, meu Jesus, de maneira especial a morte que me espera e todas as penas que devem acompanhá-la, no lugar e momento que for vossa vontade. Unindo-as à vossa santa morte, ó meu Salvador, Vo-las ofereço em testemunho de meu amor a Vós. Quero morrer para Vos agradar e cumprir vossa divina vontade. — Ó Maria, Mãe de Deus, obtende-me a santa perseverança.

Referências:

(1) Sl 142, 10


(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 215-217)

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III

Em que consiste a felicidade dos bem-aventurados no céu

Entrada do Céu

Intra in gaudium Domini tui – “Entra no gozo de teu Senhor” (Mt 25, 21)

Sumário. Os bem-aventurados contemplando a Deus face a face e conhecendo as suas infinitas perfeições, amam-No imensamente mais que a si próprios e não desejam outra coisa senão verem-No feliz. Sabendo, além disso, que o seu Senhor goza e gozará eternamente uma felicidade infinita, acham nisto a sua complacência e o seu gozo e é este gozo de Deus que constitui o seu verdadeiro paraíso. Habituemo-nos a fazer muitas vezes atos de amor perfeito a Deus, alegremo-nos com o Senhor pela sua felicidade infinita, e assim começaremos a exercer na terra o ofício dos bem-aventurados no céu.

 

I. Vejamos o que seja que torna os santos moradores do céu plenamente felizes. A alma do Bem-aventurado, vendo Deus face a face e conhecendo a sua beleza infinita e todas as perfeições que o fazem digno de amor infinito, não pode deixar de O amar com todas as forças e ama-O mais que a si mesma. Mas esquecendo-se de si própria, o seu único pensamento e desejo é ver contente e feliz o seu Deus. Vendo, pois, que Deus único objeto de todos os seus afetos, goza de uma beatitude infinita, esta beatitude de Deus é que constitui o seu paraíso. — Se em um Bem-aventurado pudessem caber coisas infinitas, a vista da beatitude infinita de seu Amado lhe causaria igual beatitude infinita. Mas porque um gozo infinito não pode caber na criatura, fica ao menos tão repleta de alegria que nada mais deseja. É esta a saciedade pela qual suspirava Davi, quando disse: Satiabor, cum apparuerit gloria tua (1) — “Saciar-me-ei, quando aparecer a tua glória”.

Assim se realizará o que Deus diz à alma, dando-lhe posse do paraíso:

“Entra no gozo de teu Senhor.”

Não diz ao gozo que entre na alma, porque, sendo infinito, não cabe numa criatura. Diz que a alma entre no gozo para participar dele, mas participar de tal forma que fica saciada e repleta. — Portanto entre os atos de amor de Deus, que se podem fazer na oração, não há ato mais perfeito do que o comprazer-se na felicidade infinita de que Deus está gozando. É este o exercício contínuo dos Bem aventurados no céu; de sorte que o que se compraz na felicidade de Deus, começa a fazer cá na terra o que espera fazer no céu por toda a eternidade.

É tão grande o amor para com Deus de que os Bem-aventurados no céu estão abrasados, que se jamais lhes viesse o medo de perderem a Deus ou de não O amarem com todas as forças, assim como O amam, tal temor lhes faria sofrer uma pena igual ao inferno. Mas não; eles estão certos, como o são da posse de Deus, que O amarão sempre com todas as forças e sempre serão amados de Deus e que esse amor recíproco não acabará mais nunca. Meu Deus, pelo amor de Jesus Cristo, fazei-me digno de tamanha ventura.

II. Santo Agostinho tinha razão quando disse que para se obter uma beatitude eterna, seria preciso um trabalho eterno. Para ganhar o paraíso é pouco o que fizeram os eremitas com suas penitências e orações, pouco o que fizeram os santos deixando parentes, riquezas e reinos; pouco o que padeceram os mártires nos cavaletes, nas coraças em brasa, pelas mortes mais cruéis.

Cuidemos ao menos em carregar com alegria as cruzes que Deus nos envia; porquanto, se viermos a nos salvar, todas elas se mudarão para nós em gozos eternos. Quando nos aflijam as enfermidades, as dores ou outras adversidades, levantemos os olhos ao céu e digamos: Um dia todas estas penas terminarão e depois espero gozar da posse de Deus para sempre. Animemo-nos a sofrer e a desprezar todas as coisas do mundo. Suportemos tudo e desprezemos as coisas criadas. Jesus está à nossa espera, tendo na mão a coroa para nos coroar reis do céu, se lhe formos fiéis.

Ó meu Jesus, como posso eu pretender à posse de tão grande bem? Eu que por umas satisfações miseráveis da terra renunciei abertamente ao paraíso e calquei aos pés a vossa amizade? Mas o vosso sangue anima-me a esperar o paraíso, depois de ter merecido tantas vezes o inferno. Sim, porque Vós quisestes morrer na cruz exatamente para dar o paraíso a quem não o merecia. Meu Redentor e meu Deus, não Vos quero mais perder, dai-me vossa graça para Vos ser fiel. Adveniat regnum tuum — “Venha a nós o vosso reino”; peço-Vos pelos merecimentos de vosso sangue que me deixeis entrar um dia em vosso reino. Enquanto não chegar a hora de minha morte, fazei que eu cumpra perfeitamente a vossa vontade; é nisso que consiste o maior bem e o paraíso de que nesta terra pode gozar o que Vos ama. Fiat voluntas tua —“Seja feita a vossa vontade”.

— A vós também, ó grande Mãe de Deus e minha Mãe, Maria, peço esta graça.

Referências:

(1) Sl 16, 15


(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 212-215)

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III

 Remorso do condenado por causa do bem que perdeu

Desespero (pintura de Vitoria Duarte)

Desespero (pintura de Vitoria Duarte)

Perditio tua, Israel; tantummodo in me auxilium tuum – “A tua perdição, ó Israel, toda vem de ti; só em mim está o teu auxílio” (Os 13, 9)

Sumário. O que mais atormenta o réprobo no inferno é o ver que perdeu o céu e o Bem supremo, que é Deus; e perdeu-O não por qualquer acidente ou por malevolência d´outrem, mas por sua própria culpa. Meu irmão, se no passado nós também tivemos a insensatez de renunciar por malícia própria ao paraíso, remediemo-lo enquanto houver tempo, antes que tenhamos de chorar eternamente a nossa desgraça. Talvez seja este o último apelo que Deus nos dirige.

I. O tormento mais feroz do réprobo será reconhecer o grande bem que perdeu. Segundo São João Crisóstomo, os réprobos sentirão mais aflição pela perda do paraíso que pelos tormentos do inferno: Plus coelo torquentur, quam gehenna. — Refere-se que a infeliz Isabel, rainha de Inglaterra, disse:

“Conceda-me Deus quarenta anos de reinado e renuncio ao paraíso.”

Teve a infeliz esses quarenta anos de reinado; mas que dirá agora, que a sua alma saiu deste mundo? Sem dúvida já não pensa da mesma forma. Como não deve estar aflita e desesperada, ao pensar que, por quarenta anos de reinado, passados em temores e angústias, perdeu para sempre o reino celestial?

Mas, o que por toda a eternidade afligirá mais o réprobo será reconhecer que perdeu o céu e o soberano bem que é Deus, e que o perdeu não por algum mau acidente, nem pela malevolência d´outrem, mas por sua própria culpa. Verá que foi criado para o paraíso, verá que Deus lhe pôs na mão a escolha entre a vida e a morte eterna: Ante hominem vita et mors… quod placuerit ei dabitur illi (1). Verá, pois, que esteve na sua mão, se quisera, o tornar-se eternamente feliz. Mas verá igualmente que de seu motuproprio se quis precipitar nesse abismo de suplícios, de onde nunca poderá sair e de onde ninguém o procurará livrar.

Verá então o miserável que muitas pessoas de seu conhecimento, que passaram pelos mesmos, quiçá por maiores perigos de pecar, chegaram à salvação, ou porque se souberam conter recomendando-se a Deus, ou, se caíram, souberam levantar-se a tempo e dar-se a Deus. Ele, porém, por não ter querido pôr um termo a suas desordens, veio a acabar tão deploravelmente no inferno, nesse mar de tormentos, sem esperança de poder remediar a sua desgraça. Oh, que cruel remorso! Oh, que desespero lancinante!

II. Meu irmão, se no passado foste tão insensato para querer sacrificar o paraíso e Deus a uma indigna satisfação, procura quanto antes aplicar o remédio, agora que ainda é tempo. Não sejas obstinado em teu desvairamento. Receia ir chorar um dia a tua desgraça na eternidade.

— Quem sabe se a presente consideração não será o último apelo que Deus te dirige? Se desde já não mudares de vida, quem sabe se no primeiro pecado mortal que venhas a cometer, o Senhor não te abandonará para te condenar em seguida a sofrer eternamente entre essa multidão de insensatos, que estão agora no inferno e lá confessam seu erro, mas confessam-no desesperados, vendo que a sua desgraça é irremediável. Quando o demônio te tentar de novo ao pecado, lembra-te do inferno e recorre a Deus e à Santíssima Virgem. O pensamento do inferno te livrará do inferno: Memorare novissima tua, et in aeternum non peccabis (2) — “Lembra-te de teus novíssimos e nunca jamais pecarás”.

Ah! Meu Bem supremo, quantas vezes Vos perdi por um nada e quantas vezes mereci perder-Vos para sempre! Tranquiliza-me, porém, a palavra de vosso Profeta: Laetetur cor quaerentium Dominum (3) — “Alegre-se o coração dos que buscam o Senhor”. Não devo, pois, perder a esperança de Vos tornar a encontrar, ó meu Deus, se Vos procurar com coração sincero. Ó Senhor, neste momento suspiro mais pela vossa graça que por qualquer outro bem. Consinto em ser privado de tudo, até da vida, mas não em ver-me privado de vosso amor. Amo-Vos, ó Jesus meu Deus, sobre todas as coisas e por isso que Vos amo me arrependo de Vos ter ofendido.

Ó meu Deus, perdido por mim e desprezado, perdoai-me já e fazei que Vos encontre sem demora, porque nunca mais Vos quero perder. Se me receberdes novamente em vosso amor, quero renunciar a tudo e amar só a Vós: assim o espero de vossa misericórdia. — Padre Eterno, atendei-me pelo amor de Jesus Cristo. Perdoai-me e concedei-me a graça de nunca mais me separar de Vós, porque, se viesse a perder-Vos de novo por própria culpa, devia com razão recear que me abandonásseis.

— Ó Maria, ó reconciliadora dos pecadores, reconciliai-me com Deus. Guardai-me debaixo de vossa proteção, a fim de que nunca mais chegue a perder meu Deus.

Referências:

(1) Eclo 15, 18
(2) Eclo 7, 40
(3) Sl 140, 3


(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 209-212)

domingo, 20 de outubro de 2024

Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: 22º Domingo depois de Pentecostes

 

 O tributo de Cesar e a obrigação de amar a Deus

Fidelidade à Deus: dai a Cesar o que é de Cesar, e a Deus o que é de Deus

Reddite quae sunt Caesaris Caesari, et quae sunt Dei Deo“Dai a Cesar o que é de Cesar, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21)

Sumário. Para convencer os fariseus da obrigação de pagarem tributo a Cesar, o divino Redentor mostrou-lhes a imagem estampada na moeda com que costumavam pagar o tributo. Lancemos nós também um olhar sobre nós mesmos: consideremos que fomos criados por Deus à sua imagem e semelhança; lembremo-nos mais que no santo batismo nos foi impresso o caráter indelével de discípulos de Jesus Cristo, e facilmente chegaremos a esta bela conclusão: Dai a Deus o que é de Deus.

I. É esta a bela resposta que no Evangelho de hoje Jesus Cristo dá aos fariseus, que, com o intuito maligno de o apanharem em suas palavras, o interrogavam sobre se era ou não lícito pagar o tributo: “Dai a Cesar o que é de Cesar, e a Deus o que é de Deus“. Por estas palavras quer ensinar-nos que devemos dar aos homens o que ele o quer todo para si.

Isto é de inteira justiça, porque o Senhor não é somente a primeira Verdade, mas além disso o supremo Bem. Como portanto o nosso entendimento paga a Deus, como à primeira Verdade, o tributo de submissão pela fé, crendo sobre a palavra de Deus coisas que não compreende; assim a nossa vontade deve pagar a Deus, como ao Bem supremo, um tributo de afeto, “amando-o com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças” (1). Tanto mais que é unicamente para cativar o nosso amor que Jesus se fez homem, nos remiu com o seu preciosíssimo sangue e morreu sobre a cruz nos mais atrozes tormentos.

Ó meu lastimoso Redentor! Quantos são os que Vos amam? Vejo a maior parte dos homens ocupados em amarem, uns os parentes, outros os amigos, outros até os animais; mas Jesus não é amado; ao contrário, é ofendido e pago com a mais negra ingratidão. – Meu irmão, quero crer que te achas em estado de graça e por isso quero crer que amas Jesus Cristo. Podes, porém, dizer que o amas de todo o teu coração?… És porventura um daqueles que, levando vida tíbia, nutrem a ilusão de poderem servir ao mesmo tempo a dois senhores inteiramente opostos, como são Deus e o mundo? – Ah! Lembra-te, assim te direi com São Felipe Neri, que todo o amor que consagramos às criaturas é roubado de Deus; se não cuidarmos em séria emenda, acabaremos cedo ou tarde por o roubarmos todo.

II. Observa o Evangelho que, para convencer os fariseus da necessidade de pagar o tributo, Jesus se fez mostrar a moeda do tributo, e referindo-se a ela, disse:

“De quem é esta imagem e inscrição”

E tendo eles respondido: “É de Cesar“, o Senhor logo acrescentou: “Dai, pois, a Cesar o que é de Cesar“. Como se dissesse: Já que do imperador recebestes a moeda, justo é que lh’a restituais pagando o tributo.

É o que tu também deves fazer para que mais facilmente te resolvas a pagar teu tributo a Deus. Pergunta muitas vezes a ti mesmo: Cuius est haec imago et superscriptio? – “De quem é esta imagem e inscrição?”. Quer dizer: Põe-te a considerar que foste criado por Deus à sua imagem e semelhança e para o único fim de o amares; considera mais que no santo Batismo te foi impresso o caráter indelével de discípulo de Cristo; e logo chegarás à conclusão que deves dar a Deus o que é de Deus: Reddite ergo quae sunt Dei, Deo.

Ó meu Senhor, visto que me quereis todo para Vós, eis que me dou a Vós todo inteiro, sem reserva. Não quero que outro qualquer me roube uma parte deste coração que Vos criastes só para Vós, ó bondade infinita, digna de amor infinito. O meu coração é muito pequeno para Vos amar tanto como mereceis. Que injustiça, pois, não Vos faria, se o quisesse dividir para amar outra coisa que não seja Vós? Não, meu Jesus amabilíssimo, só a Vós quero amar, e nesta vida e na outra nada desejo senão o tesouro de vosso amor, ó Deus de meu coração e minha herança para sempre (2).

Não desprezeis o amor de um pecador que outrora Vos ofendeu; abrasai sempre mais em mim as felizes chamas do amor, e sede em toda ocorrência o meu refúgio e a minha força.

– “Ó Pai Eterno, pelo amor de Jesus Cristo atendei-me, pois que sois o mesmo autor da piedade, e fazei que eficazmente consiga o que Vos peço com viva confiança” (3).

† Doce Coração de Maria, sede minha salvação.

Referências:

(1) Dt 6, 5
(2) Sl 15, 5
(3) Or. Dom. curr.


(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 207-209)

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